domingo, 31 de janeiro de 2010




Contemplando a maré baixa

nos mangues do Tijipió

lembro a baía de Dublin

que daqui já me lembrou.


Em meio à bacia negra

desta maré quando em cio,

eis a Albufera, Valência,

onde o Recife me surgiu.


As janelas do cais da Aurora,

olhos compridos, vadios,

incansáveis, como em Chelsea,

vêem rio substituir rio.


E essas várzeas de Tiuma

com seus estendais de cana

vêm devolver-me os trigais

de Guadalajara, Espanha.

Mas as lajes da cidade

não em devolvem só uma,

nem foi uma só cidade

que me lembrou destas ruas.


As cidades se parecem

nas pedras do calçamento

das ruas artérias regando

faces de vário cimento,


Por onde iguais procissões

do trabalho, sem andor,

vão levar o seu produto

aos mercados do suor.


Todas lembravam o Recife,

este em todas se situa,

em todas em que é um crime

para o povo estar na rua,


Em todas em que esse crime,

traço comum que surpreendo,

pôs nódoas de vida humana

nas pedras do pavimento.


João Cabral de Melo Neto
(Paisagens com figuras, 1954/1955)

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