sexta-feira, 12 de março de 2010

Resenha do livro "As Misérias do Processo Penal"

As Misérias do Processo Penal – resenha crítica
Esta resenha está fundamentada na obra “As Misérias do Processo Penal” do grande jurista Francesco Carnelutti, ao qual foi traduzida da versão espanhola do original italiano por Carlos Eduardo Trevellin Millan. A data da primeira publicação desta obra foi em 1957, sobre o título original “Le miserie Del processo penale”. Francesco Carnelutti (Udine 1879Milão 1965), foi um dos mais eminentes advogados e juristas italianos e o principal inspirador do Código de Processo Civil italiano. Mestre do direito substantivo civil e penal. Em 1924, juntamente com Giuseppe Chiovenda, fundou e dirigiu a Rivista di Diritto Processuale Civile (Revista de Direito Processual Civil).
Uma das primeiras coisas que chama a atenção para o livro é seu título e a que ele se propõe, seria um diagnóstico da ciência processual penal em sua época? ou seria um manifesto para transformações urgentes?. Para responder estas perguntas o autor propugna uma reflexão sobre a leitura de cento e vinte e sete páginas, ao qual surpreendentemente nos revela mais que apenas uma leitura sobre a ciência processual.
Para estabelecer parâmetros sobre seu livro e suas idéias, faz-se necessário entender o contexto do Direito Penal em sua época, ao qual sintetizo: O Mundo passa por profundas transformações humanas, ainda sob a sombra da pós-guerra, os princípios que norteiam o direito caracteriza-se com a preocupação com a vida humana, tal como o princípio da dignidade da pessoa humana, esta será o norte para a legislação dos Estados, que garantirão através de suas Constituições diretrizes para a conduta de seus povos. O código penal vigente no Brasil na data da publicação do livro é o de 1940 e o código de processo penal é de 1941. Foi na década de 50 que o Brasil começou a se modernizar. Foi nesta década que chegou ao Brasil a televisão, ocasionando profundas mudanças nos meios de comunicação. A imprensa falada ganha corpo com rádio, levando informação aos mais remotos rincões, o mundo passa por uma efervescência cultural atingido o Brasil com uma intensa movimentação tanto na música quanto no cinema, teatro, sendo a Bossa Nova um grande exemplo desses movimentos. O país engatinha a caminho da modernização, passando de país agrário, com a maior parte da população morando no campo a caminhar para a industrialização com a população migrando do campo para as cidades proporcionando um grande crescimento destas e se urbanizando. Os anos 50 se caracterizaram por uma profunda modificação na sociedade brasileira. Nesta década o Brasil inicia os primeiros passos para entrar no caminho do desenvolvimento econômico. Foram anos de intensa movimentação política culminando com a chegada de Juscelino à presidência, prometendo modernizar o Brasil. Seu grande feito que o projetou para história foi a construção de Brasília a nova capital. A novidade governamental foi seus planos de metas,prometendo governar 50 anos em 5. O populismo impera com governantes com grande apelo popular. O grande populista, Getúlio que sai da vida para passar para história em 1954. Os grupos sociais começam a se organizar em associações, sindicatos e partidos dando o chute inicial do que seriam as grandes mudanças ocorridas nos anos 60, inclusive no aspecto jurídico, pois o país importa teorias e idéias de grandes penalistas, refletindo em nossa doutrina processual penal. Como as difundidas teorias de Carnelutti sobre a Jurisdição e conceito de processo (Direito Processual é aquela parte do direito que regula o processo, “Instituições do novo processo civil italiano”, pag.29;30). Ele juntamente com outros inauguraram a fase instrumentista do processo, a preocupação com o fim a que se dá o processo, a quem se destina, seus resultados, como dinamizar o seu acesso, são uma das preocupações desta fase, que segue nos dias de hoje.
Logo no prefácio de seu livro o autor traz a eterna dicotomia entre a luta do bem contra o mal, da sabedoria usada para o bem ou para o mal, o caminho entre a prece e o mal que se torna espetáculo de cinema. Aqui ele traça um perfil do homem entre seu niilismo absoluto, que chama de incivilidade, alusão aos espetáculos processuais, e sua humanidade cristã. Ele traduz seu sentimento niilista na seguinte frase: “considerar o homem como uma coisa: pode haver uma fórmula mais expressiva da incivilidade?” e complementa: “No entanto, é o que ocorre, infelizmente, em nove de cada dez vezes no processo penal.”, concluindo que as penitenciárias ou prisões, são zoológicos e os imputados animais. Surge daí uma controvérsia, onde começa a ciência e termina a religião, estaria correto unir as duas?, Cristo seria o caminho para a salvação da ciência processual ou um caminho a seguir?, entendo que estas discussões levam a confusão, seja aplicado ao ceticismo científico e sua zetética ou nos dogmas religiosos. Como cientista prefiro entender soluções práticas no campo processual, deixando o humanitário para as igrejas, contudo sem jamais deixar de entender que o fim da ciência é homem e a ele se objetiva todo o estudo e aprofundamento promovendo sua evolução.
No capítulo sobra a toga, ele define estas vestes como algo senão sendo uma farda, divisa, em que se é usada para compor uma guerra, para ele o Juiz está ali para celebrar a paz, enquanto o advogado e ministério público estão para declarar guerra (teoria da guerra processual), em que um sairá vitorioso e o outro derrotado, esse esforço é realizado para alcançar a justiça. A primeira miséria do processo penal ao qual retrata é a intervenção pública nos processos judiciais, a banalização do ser humano, a indiferença do judiciário perante tal situação, ele retrata como uma situação de total desordem. Tema que se torna atualíssimo como no caso das prisões temporárias, criada pela lei n.7.960/89, que tem como intuito coibir as ilegais prisões para averiguação, a prisão temporária possui três requisitos: ser imprescindível para a investigação policial; não ter o indicado residência fixa ou não fornecer elementos para sua identificação; e existir fundadas razões de sua autoria e participação em uma série de delitos como quadrilha ou bando, tráfico de drogas e crimes contra o sistema financeiro. Na prática, a prisão temporária tem sido decretada por magistrados de primeira instância sem a devida fundamentação, servindo apenas para a polícia coagir os acusados a confessar ou aceitar a chamada delação premiada. Alguns juristas a vê como desnecessária, pois é temporária, como o próprio nome já diz, tais prisões acabam tendo seu prazo vencido ou, então, são revogadas em instâncias superiores. O próprio poder judiciário finca prejudicado em sua já combalida imagem, conforme se vê na publicação do Jornal do Comércio do dia 19 de agosto de 2009, onde revela o ranking da taxa de congestionamento das justiças estaduais em 2008, tendo Pernambuco como o primeiro das mais congestionadas, fora a taxa dos erros judiciários, provando que existe o induzimento pela imprensa a população, onde diz, equivocadamente, que “a polícia prende, mas a justiça solta”... . Porém a forma com que a polícia federal vem executando tais prisões tem, por outro lado, desrespeitado flagrantemente garantias constitucionais como a proibição de tratamento degradante, a inviolabilidade da imagem das pessoas, o respeito à integridade física e moral das mesmas e a presunção de inocência. A imprensa televisiva e escrita é previamente avisada da hora e local em que as prisões são efetivadas, e para onde os detidos serão levados. Prendem-se os acusados na presença de seus familiares, algema-se sem que houvesse qualquer resistência à prisão e, por vezes, jogam-se os detidos nas partes traseiras dos camburões. Contentam-se (em relação aos riscos) coma condenação da opinião pública que se dá por meio da humilhação da prisão, das algemas, etc. Em nome das exigências do direito à informação, que é o “pulmão das democracias modernas”, haja vista a internet com o Google, onde basta digitar seu nome para contemplar dados ao seu respeito, arrasam publicamente os suspeitos, antes de qualquer culpa formada. Retornamos ao Brasil colônia, conforma a advertência feita por Henri Leclerc: “Outrora, condenavam-se à canga ou ao pelourinho os estelionatários, os homens públicos desonestos, os falidos e os falsários. Eram expostos a zombarias da multidão, cabeça e mãos passadas pelo buraco de uma prancha. A pena era infamante e, portanto, tão moralmente dolorosa que os humildes e os pobres se vingavam por suas humilhações cotidianas aplaudindo esses pesados castigos pelos quais passavam os poderosos”.
Carnelutti já traçava o perigo das multidões, onde os magistrados permitiam que assistissem a julgamentos, às vezes, não contendo no tribunal a quantidade de pessoas presentes, sem qualquer interferência dos juízes, já havia pra ele nestes episódios a ideologia do inimigo, provocando a degradação popularesca da justiça. Os que não entendem que a opinião pública não tem o direito de substituir a justiça se arriscam a ser arbitrários e tirânicos como ela.
Para Francesco Carnelutti neste livro a sua maior preocupação está na figura do preso, o apenado, para ele o mais pobre de todos os pobres é o preso, o encarcerado. Também pões as algemas como um símbolo do direito, traduzindo com o mais autêntico emblema do direito, já aí era um expoente do que seria mais tarde tratado na súmula nº11 do STF. Ele diz que seu uso é feito para acorrentar animais, feras. Um traço da humanização do apenado quando se põe em situação de compaixão esta aqui: “Nós não nos assemelhamos aos animais porque estamos na cela, e sim que estamos em uma cela porque nos assemelhamos aos animais. Ser homem não quer dizer não ser, e sim poder não ser um animal. Esta capacidade é a capacidade de amar”. Também para ele a advocacia, o advogado é um ofício que não é favorecido pelo público, isto desfavorecido por uma visão dos meios de comunicação, forte preocupação para ele já naquela década, outro ponto discutido pelo Francesco é que o exercício da advocacia é espiritualmente saudável, pois está em sua prerrogativa o dever de pedir, e pedir nada é que rogar, suplicar, abraçando a humildade e estando mais próximo ao divino.
O juiz para Cernelutti está no topo da pirâmide, numa escala superior. Para ele nada adianta do juiz conhecer outras ciências multidisciplinares, sem está convicto que o apenado não é apenas um réu, e sim um ser humano que nem ele, e tal deve ser tratado, com tamanha dignidade. Outro questionamento feito pelo autor sobre as posições do juiz e defensores, é sobre sua imparcialidade, pois o preço que paga o defensor pela sua imparcialidade é a imparcialidade do juiz, no entanto traduz que o acusador não pode e nem deve ser imparcial, buscando ambos, defensor e acusador premissas até chegar numa conclusão forçada, sendo isto a chave do processo.
Uma outra preocupação do célebre processualista é quanto a natureza das provas, sendo incluído nesse rol as testemunhas, mesmo alertando para possibilidade de mentir, proferi que as testemunhas devem ser protegidas contra perseguições da imprensa e grande multidão, sua identidade tem que ser protegida, pois pode ser influenciada no decorrer do processo, inclusive ter sua integridade ameaçada. Realçando exatamente a atual condição das autoridades diante da preocupação do estado da testemunha, ou seja, o mesmo de décadas anteriores, nenhuma.
Outro argumento defendido por Francesco Carnelutti é o do engessamento do Direito Penal, a falta de modernização e incapacidade de acompanhar a evolução da modernidade, provocando antinomias ao qual o direito processual se torna prejudicado. Onde retrata: “Não se deve protestar contra a lei. De acordo com isto, não se pode protestar contra a necessidade; mas não se pode ocultar que o direito e processo são uma pobre coisa, isto é, verdadeiramente, o que se necessita para fazer avançar a civilidade”. Sendo assim, ele aqui declara que é necessário conhecer suas deficiências para tentar melhorá-las, em busca da civilidade.
Fala também de outra e sem dúvida séria miséria do processo penal, o erro judiciário, pois provoca danos irreparáveis ao imputado, levando consigo o estigma do cárcere, refletida pelo preconceito da sociedade. Na maioria das vezes o autor trata o erro como negligência das autoridades e serventuários, falando em falso pudor. Mais uma realidade de nosso sistema processual, onde por anos o preso mesmo tendo pago sua sentença fica aprisionado, os excessos de prescrições, as prisões por homônimo e a dificuldade de identificá-los, entre outros. Declara certeza coerente que: “...a coisa julgada não é a verdade, mas se considera como verdade. Em suma, é um subrogado da verdade”.
Uma grande miséria do processo penal é a situação em que se encontra os presídios, sua precariedade, sucateamento, situação em que nada se propõe nosso Estado em melhorar. Para o renomado jurista a penitenciária é um hospital, cheio de enfermos de espírito, em vez de doentes de corpo. A que se propõe a penitenciária do que a de promover a redenção do imputado, sua reintegralização a sociedade, capaz de trabalhar para prover a si e sua família; Estes fundamentos fora debate de inúmeras discussões fomentando teorias em que se defendia o Estado como sendo como repressor, depois como preventivo e hoje reintegralizador. Mas como integrar um ex-condenado a sociedade com o sistema prisional falido? Pergunta respondida por estatísticas infelizes que demonstram a total incapacidade do Estado gerir o sistema carcerário penal, a penitenciária é uma fábrica de marginais, cuja a sociedade alimenta, sendo inclusive cenário de batalhas entre grupos formados lá dentro, tendo sua operacionalidade a nível nacional, como o PCC (Primeiro Comando da Capital), facção tão organizada que fora responsável pela desestruturalização do Estado em alguns locais, há lugares em que há completa ausência do Estado e controle total desta facção. Portanto para Canelutti a pena serve para redimir o apenado, realizando progressos maravilhosos em sua enfermidade. Propõe a redenção através do amor e amizade, promovendo sua cura. Para esta cura cada um de nós operadores do direito tem que desenvolver dentro de si o amor pelo próximo, deixando assim, a pena ser um questão apenas jurídica para se transformar numa questão moral, pois cada um a de se comprometer com o outro, de maneira responsável, pois “o Estado pode impor aos cidadãos respeito , mas não lhe pode infundir amor”.
Por fim, mais além do direito, traduz de forma magnânima o tratado a que se propõe este livro, que é o de se viver em paz, com civilidade humanidade e unidade, com devoção e fé, caridade e amor a Cristo, estabelecendo um caminho de amor e fraternidade, isso a que se propõe este livro, um desabafo deste grande jurista.
Neste livro Francesco Carnelutti quis fugir das vicicitudes e pragmatismos científicos, retrata de forma brilhante a realidade processual, mesmo tendo escrito na década de cinqüenta, mas se torna atualíssimo a cada frase e releitura feita, é assustador ao mesmo tempo motivador ver como a ciência processual penal e do direito penal está carente de mudanças, mas mudanças profundas, ao qual como futuro operador do direito quero fazer parte. Finalizo agradecendo ao professor Uraquitan a oportunidade de conhecer essa obra e poder refletir sobre alguns dos caminhos a seguir no processo penal.
Por Flávio Fraga

Um comentário:

  1. Caro amigo Jurista, confesso que fiquei arrepiado com este livro,pois tbm quero agradecer ao meu professor de Dir.penal Clovis Volpe,por me mostrar esta obra..
    e vejo que o processo penal realmente esta precisando de mudanças..
    tive que buscar uma resenha,
    pois as vezes não da tempo de ler o livro,rs há coisas a fazer como trabalho e faculdade a noite, assim lhe agradeço por essa resenha maravilhosa.Parabéns.

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