terça-feira, 23 de março de 2010

Resenha do filme Meu Nome não é Johnny



O filme “Meu nome não é Johnny” é baseado na obra homônima de Ricardo Fiúza, o livro publicado pela editora Record contém 336 páginas da trajetória do que seria o maior traficante da década de 90, o filme por sua vez é uma realização do diretor e produtora: Mauro Lima (Primeiro longa metragem, antes só tinha dirigido videoclipes) e Mariza Leão, tendo como auxílio o protagonista do livro João Guilherme Strella, fazendo inclusive, uma ponta como enfermeiro do sanatório.
A vida de João Guilherme Strella é sem dúvida rica em fatos, que traduzido para o cinema se tornou uma das maiores bilheterias do cinema naquele ano, pondo fogo em temas polêmicos como: drogas, sexo e família. A linha temporal do filme fica entre o final da década 70, em sua infância vivida no Rio de Janeiro, passando pelos anos 80 e finalizando com os anos 90, de forma bem construída e harmônica.
O homem evolui, e a sociedade com ele, o conceito de família, objeto de estudos de diversas ciências, como a sociologia, psicologia e abordado pelo próprio direito, vem se modificando ao longo dos tempos, de uma sociedade extremamente patriarcal, para uma sociedade que busca a igualdade, contudo não a igualdade da primeira dimensão, promovida pelos franceses, como a igualdade entre homens, e nem na segunda, como a igualdade social, e sim a igualdade substancial, defendida por Rui Barbosa, comentada por Paulo Bonavides e sustentada por Aristóteles: “A verdadeira igualdade consiste em tratarem-se igualmente os iguais e o desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”, sendo seu bojo a justiça comutativa. Contudo, a família mesmo como objeto científico é sem dúvida estrutura difícil de ser estudada e avaliada no contexto de hoje, pois o progresso transforma tudo, e isso é um óbice ao qual o Estado tem que está atento, seja de forma preventiva, com campanhas de inclusão social de famílias de baixa renda ou mesmo repressivas, como o combate a violência doméstica. Este preâmbulo norteia a importância da família na introdução de valores morais (super-ego, ao qual direcionará a vida da criança pelo resto de sua vida, pois formará sua personalidade, isso João ou Johnny, tenha perdido em algum momento quando criança).
O filme não se preocupa em dá lições de moral, apenas espelha uma parcela da juventude de sua geração, boêmia, arraigadas a busca pelo prazer, sem maiores responsabilidades, que passam de viciados a criminosos. João é o retrato fiel do jovem de classe média, popular, inteligente e que se utiliza dos adjetivos para beneficiar-se, desafiando a lei, aventurando-se num futuro que mais tarde traduziria de maneira enérgica o futuro dos que vivem a margem da lei.
Uma estética comum a biografias, ou filmes baseados em livros sobre a vida privada, é a narração do próprio protagonista ou pessoa biografada, revisitando sua vida e acrescentando com emoção e fidelidade os caminhos percorridos pelo personagem, coisa que não houve neste filme, o diretor preferiu uma abordagem mais dinâmica, com mais ação e sem intervenção dos depoimentos, que para mim, prejudicou a mensagem final do filme. Seria interessante poder entender ou compreender passagens ao qual o próprio Strella sentiu, o que o levou a cometer determinados atos, comentários importantes aos quais sem dúvida acrescentaria muito ao filme, sem contudo perder a essência do livro, seria apenas um plus, acréscimo valioso a película. No entanto o filme não perdeu em ação e adrenalina, sendo constante na fidedignidade ao livro, ao qual traduz já na orelha do livro a síntese de Zuenir Ventura, fazendo em duas linhas a resenha definitiva do relato que temos em mãos: "Utilizando recursos ficcionais, o livro de Fiúza é um irresistível thriller sem ficção, num ritmo vertiginoso e por meio de uma linguagem feita preferencialmente de substantivo e verbo, sujeito e ação". Ao que acrescentaríamos: um thriller acima de qualquer suspeita literária.
Mas se por um lado o filme prende por ser um trepidante filme de ação, por outro, nos mostra a realidade sem disfarce de uma sociedade capenga, a exemplo das péssimas condições dos manicômios judiciários, das prisões e carceragens, dos atrasos e erros processuais, dos excessos de prisões preventivas, de estatísticas negativas do crime, isto o que os dados mostram e contam, e também os que não estão lá, calculados numa nota fria. Os aparelhos estruturais do Estado brasileiro, sejam de cunho preventivo ou repressivo, precisam urgente de reformas sérias, e não de ideologias sem fundamento, exclusivamente de cunho político.
Johnny é mais um de tantos jovens brasileiros usuários de drogas, diferente dos números, teve sorte, pois encontra-se vivo, contudo não foi vítima de drogas modernas como o Crack e a ice, que viciam na primeira ou segunda pedra, fazendo com que o utente perca completamente o discernimento, sem saber avaliar o certo do errado, pois há perda do equilíbrio psicológico, difícil de ser resgatado, chegando às raias da intervenção. O que é um indivíduo sem personalidade e sem o poder de tomar suas próprias decisões? Neste caso, vira apenas um fantoche nas mãos de traficantes ou pessoas sem escrúpulos.
Se João Strella tivesse seguido o caminho inverso, seria bem sucedido? Teria viajado? Conquistado mulheres e chegado à cifra de 1.000.000,00 (um milhão)?, Talvez não, mas com certeza arrependeu-se de tudo, inclusive realiza palestras dando depoimentos sobre sua vida, mostrando o caminho inverso que se deva percorrer, o da luta e conquista realizada pelo esforço e merecimento, dentro da lei. Com apoio da família e amigos, sem que com isso ponha em risco a própria vida e a de nenhum ente querido.
Essa seqüência de imagens nos faz refletir sobre a trajetória do crime e seu resultado, que é estampado diariamente nos diversos meios de comunicação, é a era ou a geração da violência, vivemos trancados e os marginais soltos, estamos sobre regime de guerra, pois o consumo das drogas aumenta vertiginosamente e com ela as milícias armadas, crianças são recrutadas pelo tráfico, não brincam mais, prostituem-se, armam-se, em nome de uma guerra civil camuflada; os vendedores não possuem a mesma cara e idade da década de 90. As vovós do tráfico comandam quadrilhas e os centros de ressocialização são escolas de formação para bandidagem.
Vemos várias Sofias (Cléo Pires), mulheres de traficantes ou mesmo traficando, nos noticiários, sendo chefes das bocas de fumo ou até mesmo assaltantes e homicidas, coisa que décadas atrás seria difícil de conceber a não ser na ficção, como no filme Telma e Louise ou Bonnie e Clyde. Os valores estão se invertendo e nós estamos nos acostumando. Modernização, progresso? Acho que para a primeira hipótese é um caminho inevitável, porém para a segunda, se enquadra em seu antagonismo, o regresso, seja na esfera social ou na conjuntura global, ambiente, recursos escassos e política, uma trajetória de futuro sem grandes possibilidades de desenvolvimento humano. São necessárias transformações sérias, mudanças na estrutura das leis e nos instrumentos ideológicos do Estado, maior preocupação com o ser humano e busca de soluções ambientais sustentáveis.
Não gostaria que esse filme em anos posteriores fosse visto, como quadrinhos de uma realidade glamorosa, pois a passos que estamos dando, falo de nossa sociedade, Strella será visto como um anti-herói, tamanha é a evolução do narcotráfico ramificando-se inclusive nos poderes do Estado. Precisamos de um alerta geral, conscientização e muita luta em prol de políticas sérias de combate as drogas.
Um aspecto importante a ser considerado entre as abordagens realizadas entre o filme e o sistema processual penal são as culturas de mídia e seus reflexos na sociedade, produzindo um estereótipo negativo e caricaturizando a justiça, desacreditando sua organização. A sociedade atual reclama por uma justiça rápida e rígida o que impede a devida maturação do processo. Essa necessidade, por sua vez, emerge do condicionamento de receber as notícias com maior velocidade, acrescida do estado de pânico. A sociedade sente a necessidade de que todos os crimes tivessem soluções urgentes porque existe uma enorme quantidade de informações relativas ao crime que são difundidas quase que momentaneamente. Bastante esclarecedoras são as palavras do jurista Aury Lopes Jr. “Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada com a velocidade da virtualidade não quer esperar o processo, daí a paixão pelas prisões cautelares e a visibilidade de uma imediata punição. Assim querem o mercado (que não pode esperar, pois o tempo é dinheiro) e a sociedade (que não quer esperar, pois está acostumada com o instantâneo). Isso ao mesmo tempo em que desliga do passado, mata o devir, expandindo o presente. Desse presenteísmo / imediatismo brota o Estado de Urgência, uma conseqüência natural da incerteza epistemológica, da indeterminação democrática, do desdobramento do Estado Social e a correlativa subida da sociedade de risco, a aceleração do tempo efêmero da moda. O Estado de Urgência a que se refere à transcrição acima significa uma construção ideológica na qual a mídia faz eco, com o aval do Estado, para chamar a atenção do caos, ou seja, cria-se um terror na sociedade para legitimar uma intervenção dura do Estado que, por sua vez, utiliza-se do processo penal para almejar este objetivo. A esse desvio de função do processo penal a doutrina denomina de utilitarismo do processo penal”.
O professor Rogério Greco acrescenta: “O estudo dos regimes de aplicação excepcional se reveste de grande importância na atual conjuntura mundial e nacional. Vive-se uma época em que imperam os discursos de terrorismo estatal e super criminalização que, se por um lado não se prestam a resolver as tensões sociais do mundo contemporâneo, por outro, agravam ainda mais o sentimento de insegurança em que já se vive. A ideologia do binômio “emergência – segurança” como exceção constante, afastando a sociedade da deliberação política e enfraquecendo o Poder Judiciário em sua função de garantidor dos direitos individuais. Portanto, a partir do estudo das características dos regimes excepcionais é possível analisar criticamente o funcionamento das instituições democráticas no Estado”.
Diante deste quadro em que as soluções devem ser proferidas o mais rápido possível e, como se não bastasse, devem possuir o invólucro da violência, isto significa dizer que a sociedade passou a cobrar do Poder Judiciário medidas violentas para o combate a criminalidade. E o que é pior, sem o trânsito em julgado, ou seja, há uma intensa cobrança para que o Poder Judiciário tome uma medida urgente para solucionar o caso. E o Poder Judiciário, cedendo aos anseios da sociedade, se vale de decisões e procedimentos para saciar esta necessidade.
O professor Aury Lopes complementando suas considerações propugna: “A criminalidade é fenômeno social complexo, que decorre de um feixe de elementos, onde o que menos importa é o direito e a legislação penal. A pena de prisão está completamente falida, não serve como elemento de prevenção, não reeduca nem tampouco ressocializa. Como resposta ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que seve apenas para estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se em uma situação muito pior do que quando entrou. Se antes era um desempregado, agora é um desempregado e um ex-presidiário. Destarte, a prisão deve ser reservada para os crimes graves e os criminosos perigosos. Não deve ser banalizada. Em definitivo estamos sendo vítimas de uma propaganda enganosa, que nos fará mergulhar numa situação ainda mais caótica. É mais fácil seguir no caminho do Direito Penal simbólico, com leis absurdas, penas desproporcionadas e presídios super lotados, do que realmente combater a criminalidade. Legislar é fácil e a diarréia legislativa brasileira é a prova inequívoca disso. Difícil é reconhecer o fracasso da política econômica, a ausência de programas sociais efetivos e o descaso com a educação. Ao que tudo indica, o futuro será pior, pois os meninos de rua que proliferam em qualquer cidade brasileira, ingressam em massa nas faculdades do crime, chamadas de “FEBEM”. A pós-graduação é quase automática, basta completar 18 anos e escolher algum dos superlotados presídios brasileiros, verdadeiros mestrados profissionalizantes do crime”.
Ferrajoli destaca, ainda a existência de verdadeiras penas processuais, pois não só o processo é uma pena em si mesmo, senão também que existe um sobrecusto inflacionário do processo penal na moderna sociedade de comunicação de massas. Existe o uso da imputação formal como um instrumento de culpabilidade preventiva e de estigmatização pública, e, por outra parte, na proliferação de milhares de processos a cada ano, não seguidos de pena alguma e somente geradores de certificados penais e de status jurídico-sociais (de reincidente, perigoso, à espera de julgamento, etc).
Essa grave degeneração do processo permite que se fale em verdadeiras penas processuais, pois confrontam violentamente com o caráter e a função instrumental do processo, configurando uma verdadeira patologia judicial, na qual o processo penal é utilizado como uma punição antecipada, instrumento de perseguição política, intimidação policial, gerador de estigmatização social, inclusive com um degenerado fim de prevenção geral. Exemplo inegável nos oferecem as prisões cautelares, verdadeiras penas antecipadas, com um marcado caráter dissuasório e de retribuição imediata.
Este problema que trouxe em voga está além da atuação dos operadores do Direito, mas muito próxima das questões de políticas públicas, tais como: educacional, desigualdade social, saúde, moradia, etc., ou seja, antes de buscar a solução para reduzir os índices de criminalidade através do processo penal é muito mais interessante a busca pelos motivos que fazem com que existam tais índices extremamente elevados. Deve-se tratar este problema a partir da raiz e não ficar utilizando alternativas inúteis. Não se pode negligenciar os direitos e garantias previstas na Constituição, deve-se pelo contrário vigiar e punir os abusos de poder e ilegalidades praticadas.
Um aspecto que me despertou atenção onde teve seu início no preâmbulo do filme e repete-se ao final, foi a mensagem da Juíza Marilena Soares num cartão de natal enviado a Strella: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos (...)” de Marguerite Yourcenar, caracterizando uma humanização da figura do juiz, vista pela maioria como algo de ímpeto intransponível, que neste caso revela-se fundamental a recuperação de alguém. Pequenos gestos, grandes homens, Christian Gurtner por Mahatma Gandhi. De sorte que João conseguiu reconquistar sua vida, recomeçar, caso raro entre tantos que assistimos de casa, o ideal, e como idealista que sou, é deixar de assistir e participar, como futuro operador ou profissional do direito das mudanças que efetivamente façam a diferença, buscando alternativas para recuperações de outros Strellas, mesmo com pequenos gestos. O que seria de um estudante sem ideologias? E a minha é de conhecer minha humanidade exercitando a capacidade de amar o próximo.
Por Flávio Fraga

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