segunda-feira, 5 de abril de 2010

Resenha do filme O Julgamento de Nuremberg


O filme se passa numa época de nossa história recente, trazendo profundas mudanças na humanidade. A sociedade moderna é um reflexo histórico das transformações trazidas com a II Guerra Mundial, principalmente sobre o paradigma da dignidade humana, servindo de norte para legislações dos Estados, orientando a condução de diretrizes éticas.
Esta película narra o julgamento de chefes das Alemanha Nazista após a II Grande Guerra, num acordo assinado em Londres pelos países aliados: Inglaterra, França, USA e URSS, com a finalidade de julgar os crimes de guerra ou contra a humanidade no âmbito do direito internacional, como a triste estatística da morte de seis milhões de judeus. Isto resultou numa série de 13(treze) julgamentos, realizados em Nuremberg (Na própria Alemanha), entre 1945 a 1949. Julgando vinte e quatro pessoas, vinte das quais médicos. Os crimes aos quais foram acusados foram: Conspiração contra a paz, recorrendo para tal a um plano comum destinado a tomar o poder e instituir um regime totalitário, com o objetivo deliberado de efetuar uma guerra de agressão, atentados contra a paz e atos de agressão, crimes de Guerra e violação das Convenções de Haia e Genebra e crimes contra a Humanidade, perseguição e extermínio, e outras barbáries contra presos políticos e civis. De início os Russos queriam que o julgamento acontecesse em Berlim, contudo pela capacidade de aprisionamento e instalações para o acolhimento de centenas de pessoas, que de forma direta ou indireta estavam envolvidos no processo, aconteceu em Nuremberg. O julgamento de Nuremberg iniciou-se no dia 09 de dezembro de 1946 e durou aproximadamente dez meses, publicando em seu final além das sentenças um código, intitulado de Código de Nuremberg. A sala do julgamento foi condicionada especialmente para que as quatro nações envolvidas tivessem pleno conhecimento de todas as etapas do processo, sendo disponibilizados microfones e auriculares, além de interpretes para o inglês, russo, francês e alemão, familiarizados inclusive com a terminologia jurídica. O Tribunal era composto por quatro juízes, um por cada uma das potências vencedoras, e quatro outros de reserva. O presidente do coletivo era o britânico Geoffrey Lawrence e o seu adjunto era Sir William N. Birkett. Entrou para história como sendo um dos maiores de nossa civilização, como o de Sócrates e o de Joana D’arc, com a diferença de números e consequências, contudo detentor de grande polêmica, para uns entusiasmados, um progresso do direito internacional e para outros críticos, um tribunal preparado e arbitrário, onde se observou a negação de postulados basilares do direito penal, como a rejeição do princípio da legalidade, dando a um plano de julgamento com elementos incriminadores pretéritos, não considerados crimes em sua prática na sua época, impondo aos acusados penas severas e cruéis, sem direito a recursos para sua defesa, sendo desde sua criação, condicionados as vontades de seus inquisidores. O Propósito de sua formação foi dar aos seus carrascos sua vingança. Winston Churchill foi o primeiro, no início de 1941, a lançar a idéia de pôr em marcha um grande processo legal destinado a julgar os responsáveis máximos do regime nazista, as suas instituições e organizações. “O castigo pelos crimes cometidos deverá ter lugar no momento em que termine o conflito”, declarou então o primeiro-ministro britânico. A 7 de Outubro de 1942 era criada a Comissão das Nações Unidas para os Crimes de Guerra, tendo como objetivo principal elaborar a lista dos responsáveis que deveriam ser julgados no final da Segunda Grande Guerra.
De acordo com o site Wkipedia: “Após estes julgamentos, foram realizados os Processos de Guerra de Nuremberg, que também levam em conta os demais processos contra médicos, juristas, pessoas importantes do Governo entre outros, que aconteceram perante o Tribunal Militar Americano e onde foram analisadas 117 acusações contra os criminosos”.
Juízes e promotores públicos de todos os quatro países tomaram parte no primeiro julgamento, que teve como réus 22 líderes da Alemanha nazista. Dentre esses líderes estavam Hermann Goering, Rudolf Hess, Joachim von Ribbentrop, Robert Ley, Wilhelm Keitel, Ernst Kaltenbrunner, Alfred Rosemberg, Hans Frank, Hjalmar Schacht, Gustav Krupp, Karl Donitz, Erich Raeder, Baldur Von Schirach, Fritz Saukel, Alfred Jodl, Martin Borman, Franz Von Papen, Arthur Seyss-Inquart, Albert Speer, Canstantin Von Neurath e Hans Fritzche. Em 1.° de outubro de 1946, o tribunal condenou 19 réus e inocentou Schacht, Papen e Fritzche. Sete réus, Hess, Funk e Raeder foram sentenciados à prisão perpétua. Schirach e Speer condenados à 20 anos de prisão, Neurath à 15 anos de prisão e Donitz à 10 anos de prisão. Bormann, Goering, von Ribbentrop e os outros foram condenados à morte. Martin Bormann foi julgado in absentia (na ausência) e não foi encontrado. Os outros condenados foram enforcados em Nuremberg, em 16 de outubro, a exceção de Goering que se suicidou em 15 de outubro, na prisão, com uma cápsula de cianureto de potássio, sem que ninguém tenha sido acusado de fornecê-lo.
O grande símbolo da vingança antinazista foi o julgamento de Hermann Goering (1893-1946), militar estrategista e político, responsável por recrutar soldados e trabalhadores, neste último, escravizando-nos, na produção armamentística. Era um dos braços direito de Hitler. No julgamento foi o terceiro a entrar no recinto com trinta quilos a menos, devido ao tratamento de seu vício a morfina, ostentando todas as suas medalhas. Sua defesa, do advogado Oto Stahmer, baseou-se a ofensa, como dito acima, ao princípio da legalidade, bem como seu dever de obediência hierárquica, (alegações repetidas por Keitel: "Defendo-me com a obrigação, comum a qualquer militar, de obediência às ordens dos superiores"; e por Frick: “Cumpri o meu dever de funcionário do Estado. Se me condenam a mim teriam, então, que condenar milhares de outros funcionários"), porém ambas as alegações foram repudiadas pelo tribunal. Em minha pesquisa encontrei a declaração do juiz Biddle: "os indivíduos têm deveres internacionais a cumprir, acima dos deveres nacionais que um Estado particular possa impor". Ora, onde ficam o espírito das nações, suas autonomias, suas soberanias ?.
Quando da entrega das acusações aos prisioneiros, a reação foi individualizada, onde Goering confessou: "O vencedor será sempre o juiz e o derrotado o acusado" e em sua defesa declarou: “Os campos de concentração, as detenções e a repressão não são criações do nazismo, mas necessidades políticas. Todas as nossas ações militares tinham por fundamento a necessidade de espaço vital. Compreendo que países que dominam três quartos do Planeta não compreendam, facilmente, esta necessidade alemã”. Houve ai a vitória do sionismo internacional. Contudo a defesa dos sentenciados não teve tempo para a colhida de provas, prepararem as alegações e surpreendia-se com inovações processuais trazidas pela Corte, pressão internacional, pedidos de celeridade no processo, isso sem contar o boicote as testemunhas de defesa e as grandes provas documentadas das atrocidades cometidas nos autos. Goering foi condenado à pena capital, morte por enforcamento, sendo cumprida a sentença, enforcamento de seu cadáver (Incoerência absurda). Ao final, três dos réus foram absolvidos. Oito receberam sentença de prisão perpétua e os demais foram sentenciados à morte por enforcamento.
A Alemanha nazista, tendo como seu chefe o líder do Partido Nacional Socialista, Adolf Hitler, é a prova de que o Estado de Direito pode ser usado em favor do totalitarismo, a lei é feita de acordo com a vontade de apenas um ou poucos. Não se preocupam com nenhum processo jurídico, desafiavam leis humanas, leis de direito natural, direito internacional ou qualquer outro direito que valorizassem a democracia, o que os interessavam eram os seus desígnios.
A humanidade evolui com a superação de suas vicissitudes, tanto é a demonstração de sua recuperação, que as intolerâncias hoje são repudiadas, longe é claro de sermos uma civilização sonhada por Tomazo Campanella (Cidade do Sol), planejada por Thomas More (Utopia) ou sustentada por Voltaire (Manifesto da Tolerância), contudo estamos caminhando, buscando fórmulas para convivência e paz. Procurando ainda responder ao extermínio em massa e aos horrores da era Hitler, em 9 dezembro de 1948 é aprovada pela ONU a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Para essa convenção, o genocídio é definido como a destruição, no todo ou em parte, de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, isto é, no genocídio as pessoas são mortas não pelo que eventualmente cometeram, mas pelo que são, enquanto nação, etnia, raça e religião.
Outro grande passo da humanidade nesta mesma época, especificamente em 1948, foi a instituição da consagrada Declaração Universal dos Direitos do Homem, formulada pela ONU em Paris, onde determina que toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, a ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para o exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal.
Hodiernamente o indivíduo conta com a evolução do direito material e com ele também da ciência processual, em sua fase instrumentalista, defende uma postura garantista do processo. De acordo com Aury Lopes Jr.: “O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena, e de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado”. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa, etc.
Nesse sentido, um importante passo vem sendo dado para alargar o universo das garantias do devido processo legal. Consiste na introdução, nas constituições, além das garantias explícitas, de regra genérica que assegure a todos a garantia do devido processo, uma "garantia inominada" que, por construções doutrinárias e jurisprudenciais, servirá para que se considere como constitucional determinada garantia não expressa.
O nosso ordenamento jurídico estabeleceu este princípio na Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso LIV, declarando que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Isto se deve a um processo lento e contínuo de transformação, reforçando tal idéia vem à lição de Canotilho: "Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da república significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do "homo noumenon", ou seja, o indivíduo como limite e fundamento do domínio político da república". Na esteira do pensamento iluminista dos séculos XVII e XVIII, o Garantismo parte da noção meta-teórica da centralidade da pessoa e de seus direitos fundamentais, bem como da anterioridade lógica da sociedade em relação ao Estado, que é visto como produto e servo daquela. Elaborado por Luigi Ferrajoli e outros juristas a partir dos últimos anos da década passada na Itália, o Garantismo dá ainda seus primeiros passos, mas desde já se apresenta como uma teoria suficientemente promissora para alimentar as esperanças daqueles que acreditam que o Estado de Direito ainda pode ser eficazmente realizado.
O garantismo sustenta o modelo de Direito Penal Mínimo de Ferrajoli. Esse modelo está vinculado diretamente ao modelo de processo penal garantista. Só um processo penal que, em garantia dos direitos do imputado, minimize os espaços impróprios da discricionariedade judicial, pode oferecer um sólido fundamento para a independência da magistratura e ao seu papel de controle da legalidade do poder.
Vale salientar que a evolução do processo penal está intimamente relacionada com a evolução da pena, que por sua vez é reflexo da estrutura do Estado em um determinado período. O processo surge com o terceiro estágio de desenvolvimento da pena, agora como "pena estatal", que vem marcada por uma limitação jurídica do poder de perseguir e punir. A pena somente pode ser imposta mediante o processo judicial e pelo Estado.
Ressalta-se nas lições de Guilerme de Souza Nucci que: “A punição estatal, logo oficial, realizada por meio do devido processo legal, proporciona o necessário contexto do Estado Democrático de Direito, evitando-se a insatisfatória e cruel vingança privada”. Porém para a justiça brasileira aplicava-se sempre uma justiça retributiva, desprezando quase por completa a avaliação da vítima do delito, o que interessava era a punição do indivíduo, excluindo por vezes valores indisponíveis em prol dos coletivos. Aos poucos vem sendo substituída esse tipo de pena por uma justiça restaurativa, começando a relativizar os interesses, transformando de coletivos em “individuais típicos”, disponíveis. Ouvindo-se mais as vítimas, procurando uma conciliação durante o processo, até mesmo o perdão recíproco, restaurando o estado de paz. Há uma flexibilização da ação penal. O sistema penal caminha para a valorização de direito e garantias individuais. Contudo, Nucci alerta que não se pode migrar em definitivo para o sistema restaurativo das penas, pois isso não proporcionará o equilíbrio almejando entre os penalistas.
Se por um lado o filme traz a tona questões de ordem humanística, também revela como pode ser tênue a linha que perpassa a justiça de fato e a de direito, esta última tendo a faculdade de privar o homem de sua liberdade, portanto sendo especialmente importante, por isso a necessidade de garantias constitucionais, respeitando-se princípios como o devido processo legal, um macro princípio que permeia em sua fonte outros, como o da ampla defesa e o contraditório, da presunção da inocência, da legalidade ou da reserva legal, do duplo grau de jurisdição, da individualização da pena, etc. Nesse entendimento, faz-se necessário estabelecer estratégias de defesa com o intuito de proteger garantias postas em nossa Carta Magna, bem como sua aplicação dentro do caso concreto, humanizando as penas, evitando a estigmatização (teoria do etiquetamento) do indivíduo.
O julgamento de Nuremberg é sem dúvida um filme obrigatório para o estudante de direito, pois revela de forma contundente e esclarecedora como o direito pode ser usado de forma negativa, impondo uma trajetória em que se estabelece um comportamento ético. Portanto agradeço ao professor Uraquitan pela oportunidade de conhecer o conteúdo deste filme, bem como de estender-me em minhas considerações.

Curiosidades:
1. As sentenças à morte foram realizadas por enforcamento. Os juízes franceses sugeriram o uso do fuzilamento para os condenados militares, visto tratar-se de um procedimento normal para tribunais de guerra militares, mas tal foi oposto por Biddle e pelos juízes soviéticos. Estes argumentaram que os oficiais militares tinham violado a ética militar e não mereciam serem fuzilados, o que seria mais dignificante;
2. Foi reportado que Streicher tenha gritado Heil Hitler! na forca;
3. Os prisioneiros foram incarcerados na Prisão de Spandau.
4. O Tribunal Penal Internacional (TPI) ou Corte Penal Internacional (CPI) é o primeiro tribunal penal internacional permanente. Foi estabelecido em 2002 em Haia, cidade nos Países Baixos, onde inclusive fica a sede do Tribunal, conforme estabelece o artigo 3º do Estatuto de Roma, documento aprovado no Brasil pelo Decreto Nº 4.388 de 25 de setembro de 2002.
5. O objetivo da CPI é promover o Direito internacional, e seu mandato é de julgar os indivíduos e não os Estados (tarefa do Tribunal Internacional de Justiça). Ela é competente somente para os crimes mais graves cometidos por indivíduos: (genocídios, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e talvez os crimes de agressão quando estes tiverem sido definidos), tais que definidos por diversos acordos internacionais, principalmente o estatuto de Roma. O nascimento de uma jurisdição permanente universal é um grande passo em direção da universalidade dos Direitos humanos e do respeito do direito internacional.
6. O Tribunal Internacional de Justiça ou Corte Internacional de Justiça é o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas. Tem sede em Haia, nos Países Baixos. Por isso, também costuma ser denominada como Corte da Haia ou Tribunal da Haia. Sua sede é o Palácio da Paz. Foi instituído pelo artigo 92 da Carta das Nações Unidas: « A Corte Internacional de Justiça constitui o órgão judiciário principal das Nações Unidas. Funciona de acordo com um Estatuto estabelecido com base no Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional e anexado à presente Carta da qual faz parte integrante." Sua principal função é de resolver conflitos jurídicos a ele submetidos pelos Estados e emitir pareceres sobre questões jurídicas apresentadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas ou por órgãos e agências especializadas acreditadas pela Assembléia da ONU, de acordo com a Carta das Nações Unidas. Foi fundado em 1946, após a Segunda Guerra Mundial, em substituição à Corte Permanente de Justiça Internacional, instaurada pela Sociedade das Nações. O Tribunal Internacional de Justiça não deve ser confundido com a Corte Penal Internacional, que tem competência para julgar indivíduos e não Estados.
Flávio Fraga

terça-feira, 23 de março de 2010

Resenha do filme Meu Nome não é Johnny



O filme “Meu nome não é Johnny” é baseado na obra homônima de Ricardo Fiúza, o livro publicado pela editora Record contém 336 páginas da trajetória do que seria o maior traficante da década de 90, o filme por sua vez é uma realização do diretor e produtora: Mauro Lima (Primeiro longa metragem, antes só tinha dirigido videoclipes) e Mariza Leão, tendo como auxílio o protagonista do livro João Guilherme Strella, fazendo inclusive, uma ponta como enfermeiro do sanatório.
A vida de João Guilherme Strella é sem dúvida rica em fatos, que traduzido para o cinema se tornou uma das maiores bilheterias do cinema naquele ano, pondo fogo em temas polêmicos como: drogas, sexo e família. A linha temporal do filme fica entre o final da década 70, em sua infância vivida no Rio de Janeiro, passando pelos anos 80 e finalizando com os anos 90, de forma bem construída e harmônica.
O homem evolui, e a sociedade com ele, o conceito de família, objeto de estudos de diversas ciências, como a sociologia, psicologia e abordado pelo próprio direito, vem se modificando ao longo dos tempos, de uma sociedade extremamente patriarcal, para uma sociedade que busca a igualdade, contudo não a igualdade da primeira dimensão, promovida pelos franceses, como a igualdade entre homens, e nem na segunda, como a igualdade social, e sim a igualdade substancial, defendida por Rui Barbosa, comentada por Paulo Bonavides e sustentada por Aristóteles: “A verdadeira igualdade consiste em tratarem-se igualmente os iguais e o desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”, sendo seu bojo a justiça comutativa. Contudo, a família mesmo como objeto científico é sem dúvida estrutura difícil de ser estudada e avaliada no contexto de hoje, pois o progresso transforma tudo, e isso é um óbice ao qual o Estado tem que está atento, seja de forma preventiva, com campanhas de inclusão social de famílias de baixa renda ou mesmo repressivas, como o combate a violência doméstica. Este preâmbulo norteia a importância da família na introdução de valores morais (super-ego, ao qual direcionará a vida da criança pelo resto de sua vida, pois formará sua personalidade, isso João ou Johnny, tenha perdido em algum momento quando criança).
O filme não se preocupa em dá lições de moral, apenas espelha uma parcela da juventude de sua geração, boêmia, arraigadas a busca pelo prazer, sem maiores responsabilidades, que passam de viciados a criminosos. João é o retrato fiel do jovem de classe média, popular, inteligente e que se utiliza dos adjetivos para beneficiar-se, desafiando a lei, aventurando-se num futuro que mais tarde traduziria de maneira enérgica o futuro dos que vivem a margem da lei.
Uma estética comum a biografias, ou filmes baseados em livros sobre a vida privada, é a narração do próprio protagonista ou pessoa biografada, revisitando sua vida e acrescentando com emoção e fidelidade os caminhos percorridos pelo personagem, coisa que não houve neste filme, o diretor preferiu uma abordagem mais dinâmica, com mais ação e sem intervenção dos depoimentos, que para mim, prejudicou a mensagem final do filme. Seria interessante poder entender ou compreender passagens ao qual o próprio Strella sentiu, o que o levou a cometer determinados atos, comentários importantes aos quais sem dúvida acrescentaria muito ao filme, sem contudo perder a essência do livro, seria apenas um plus, acréscimo valioso a película. No entanto o filme não perdeu em ação e adrenalina, sendo constante na fidedignidade ao livro, ao qual traduz já na orelha do livro a síntese de Zuenir Ventura, fazendo em duas linhas a resenha definitiva do relato que temos em mãos: "Utilizando recursos ficcionais, o livro de Fiúza é um irresistível thriller sem ficção, num ritmo vertiginoso e por meio de uma linguagem feita preferencialmente de substantivo e verbo, sujeito e ação". Ao que acrescentaríamos: um thriller acima de qualquer suspeita literária.
Mas se por um lado o filme prende por ser um trepidante filme de ação, por outro, nos mostra a realidade sem disfarce de uma sociedade capenga, a exemplo das péssimas condições dos manicômios judiciários, das prisões e carceragens, dos atrasos e erros processuais, dos excessos de prisões preventivas, de estatísticas negativas do crime, isto o que os dados mostram e contam, e também os que não estão lá, calculados numa nota fria. Os aparelhos estruturais do Estado brasileiro, sejam de cunho preventivo ou repressivo, precisam urgente de reformas sérias, e não de ideologias sem fundamento, exclusivamente de cunho político.
Johnny é mais um de tantos jovens brasileiros usuários de drogas, diferente dos números, teve sorte, pois encontra-se vivo, contudo não foi vítima de drogas modernas como o Crack e a ice, que viciam na primeira ou segunda pedra, fazendo com que o utente perca completamente o discernimento, sem saber avaliar o certo do errado, pois há perda do equilíbrio psicológico, difícil de ser resgatado, chegando às raias da intervenção. O que é um indivíduo sem personalidade e sem o poder de tomar suas próprias decisões? Neste caso, vira apenas um fantoche nas mãos de traficantes ou pessoas sem escrúpulos.
Se João Strella tivesse seguido o caminho inverso, seria bem sucedido? Teria viajado? Conquistado mulheres e chegado à cifra de 1.000.000,00 (um milhão)?, Talvez não, mas com certeza arrependeu-se de tudo, inclusive realiza palestras dando depoimentos sobre sua vida, mostrando o caminho inverso que se deva percorrer, o da luta e conquista realizada pelo esforço e merecimento, dentro da lei. Com apoio da família e amigos, sem que com isso ponha em risco a própria vida e a de nenhum ente querido.
Essa seqüência de imagens nos faz refletir sobre a trajetória do crime e seu resultado, que é estampado diariamente nos diversos meios de comunicação, é a era ou a geração da violência, vivemos trancados e os marginais soltos, estamos sobre regime de guerra, pois o consumo das drogas aumenta vertiginosamente e com ela as milícias armadas, crianças são recrutadas pelo tráfico, não brincam mais, prostituem-se, armam-se, em nome de uma guerra civil camuflada; os vendedores não possuem a mesma cara e idade da década de 90. As vovós do tráfico comandam quadrilhas e os centros de ressocialização são escolas de formação para bandidagem.
Vemos várias Sofias (Cléo Pires), mulheres de traficantes ou mesmo traficando, nos noticiários, sendo chefes das bocas de fumo ou até mesmo assaltantes e homicidas, coisa que décadas atrás seria difícil de conceber a não ser na ficção, como no filme Telma e Louise ou Bonnie e Clyde. Os valores estão se invertendo e nós estamos nos acostumando. Modernização, progresso? Acho que para a primeira hipótese é um caminho inevitável, porém para a segunda, se enquadra em seu antagonismo, o regresso, seja na esfera social ou na conjuntura global, ambiente, recursos escassos e política, uma trajetória de futuro sem grandes possibilidades de desenvolvimento humano. São necessárias transformações sérias, mudanças na estrutura das leis e nos instrumentos ideológicos do Estado, maior preocupação com o ser humano e busca de soluções ambientais sustentáveis.
Não gostaria que esse filme em anos posteriores fosse visto, como quadrinhos de uma realidade glamorosa, pois a passos que estamos dando, falo de nossa sociedade, Strella será visto como um anti-herói, tamanha é a evolução do narcotráfico ramificando-se inclusive nos poderes do Estado. Precisamos de um alerta geral, conscientização e muita luta em prol de políticas sérias de combate as drogas.
Um aspecto importante a ser considerado entre as abordagens realizadas entre o filme e o sistema processual penal são as culturas de mídia e seus reflexos na sociedade, produzindo um estereótipo negativo e caricaturizando a justiça, desacreditando sua organização. A sociedade atual reclama por uma justiça rápida e rígida o que impede a devida maturação do processo. Essa necessidade, por sua vez, emerge do condicionamento de receber as notícias com maior velocidade, acrescida do estado de pânico. A sociedade sente a necessidade de que todos os crimes tivessem soluções urgentes porque existe uma enorme quantidade de informações relativas ao crime que são difundidas quase que momentaneamente. Bastante esclarecedoras são as palavras do jurista Aury Lopes Jr. “Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada com a velocidade da virtualidade não quer esperar o processo, daí a paixão pelas prisões cautelares e a visibilidade de uma imediata punição. Assim querem o mercado (que não pode esperar, pois o tempo é dinheiro) e a sociedade (que não quer esperar, pois está acostumada com o instantâneo). Isso ao mesmo tempo em que desliga do passado, mata o devir, expandindo o presente. Desse presenteísmo / imediatismo brota o Estado de Urgência, uma conseqüência natural da incerteza epistemológica, da indeterminação democrática, do desdobramento do Estado Social e a correlativa subida da sociedade de risco, a aceleração do tempo efêmero da moda. O Estado de Urgência a que se refere à transcrição acima significa uma construção ideológica na qual a mídia faz eco, com o aval do Estado, para chamar a atenção do caos, ou seja, cria-se um terror na sociedade para legitimar uma intervenção dura do Estado que, por sua vez, utiliza-se do processo penal para almejar este objetivo. A esse desvio de função do processo penal a doutrina denomina de utilitarismo do processo penal”.
O professor Rogério Greco acrescenta: “O estudo dos regimes de aplicação excepcional se reveste de grande importância na atual conjuntura mundial e nacional. Vive-se uma época em que imperam os discursos de terrorismo estatal e super criminalização que, se por um lado não se prestam a resolver as tensões sociais do mundo contemporâneo, por outro, agravam ainda mais o sentimento de insegurança em que já se vive. A ideologia do binômio “emergência – segurança” como exceção constante, afastando a sociedade da deliberação política e enfraquecendo o Poder Judiciário em sua função de garantidor dos direitos individuais. Portanto, a partir do estudo das características dos regimes excepcionais é possível analisar criticamente o funcionamento das instituições democráticas no Estado”.
Diante deste quadro em que as soluções devem ser proferidas o mais rápido possível e, como se não bastasse, devem possuir o invólucro da violência, isto significa dizer que a sociedade passou a cobrar do Poder Judiciário medidas violentas para o combate a criminalidade. E o que é pior, sem o trânsito em julgado, ou seja, há uma intensa cobrança para que o Poder Judiciário tome uma medida urgente para solucionar o caso. E o Poder Judiciário, cedendo aos anseios da sociedade, se vale de decisões e procedimentos para saciar esta necessidade.
O professor Aury Lopes complementando suas considerações propugna: “A criminalidade é fenômeno social complexo, que decorre de um feixe de elementos, onde o que menos importa é o direito e a legislação penal. A pena de prisão está completamente falida, não serve como elemento de prevenção, não reeduca nem tampouco ressocializa. Como resposta ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que seve apenas para estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se em uma situação muito pior do que quando entrou. Se antes era um desempregado, agora é um desempregado e um ex-presidiário. Destarte, a prisão deve ser reservada para os crimes graves e os criminosos perigosos. Não deve ser banalizada. Em definitivo estamos sendo vítimas de uma propaganda enganosa, que nos fará mergulhar numa situação ainda mais caótica. É mais fácil seguir no caminho do Direito Penal simbólico, com leis absurdas, penas desproporcionadas e presídios super lotados, do que realmente combater a criminalidade. Legislar é fácil e a diarréia legislativa brasileira é a prova inequívoca disso. Difícil é reconhecer o fracasso da política econômica, a ausência de programas sociais efetivos e o descaso com a educação. Ao que tudo indica, o futuro será pior, pois os meninos de rua que proliferam em qualquer cidade brasileira, ingressam em massa nas faculdades do crime, chamadas de “FEBEM”. A pós-graduação é quase automática, basta completar 18 anos e escolher algum dos superlotados presídios brasileiros, verdadeiros mestrados profissionalizantes do crime”.
Ferrajoli destaca, ainda a existência de verdadeiras penas processuais, pois não só o processo é uma pena em si mesmo, senão também que existe um sobrecusto inflacionário do processo penal na moderna sociedade de comunicação de massas. Existe o uso da imputação formal como um instrumento de culpabilidade preventiva e de estigmatização pública, e, por outra parte, na proliferação de milhares de processos a cada ano, não seguidos de pena alguma e somente geradores de certificados penais e de status jurídico-sociais (de reincidente, perigoso, à espera de julgamento, etc).
Essa grave degeneração do processo permite que se fale em verdadeiras penas processuais, pois confrontam violentamente com o caráter e a função instrumental do processo, configurando uma verdadeira patologia judicial, na qual o processo penal é utilizado como uma punição antecipada, instrumento de perseguição política, intimidação policial, gerador de estigmatização social, inclusive com um degenerado fim de prevenção geral. Exemplo inegável nos oferecem as prisões cautelares, verdadeiras penas antecipadas, com um marcado caráter dissuasório e de retribuição imediata.
Este problema que trouxe em voga está além da atuação dos operadores do Direito, mas muito próxima das questões de políticas públicas, tais como: educacional, desigualdade social, saúde, moradia, etc., ou seja, antes de buscar a solução para reduzir os índices de criminalidade através do processo penal é muito mais interessante a busca pelos motivos que fazem com que existam tais índices extremamente elevados. Deve-se tratar este problema a partir da raiz e não ficar utilizando alternativas inúteis. Não se pode negligenciar os direitos e garantias previstas na Constituição, deve-se pelo contrário vigiar e punir os abusos de poder e ilegalidades praticadas.
Um aspecto que me despertou atenção onde teve seu início no preâmbulo do filme e repete-se ao final, foi a mensagem da Juíza Marilena Soares num cartão de natal enviado a Strella: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos (...)” de Marguerite Yourcenar, caracterizando uma humanização da figura do juiz, vista pela maioria como algo de ímpeto intransponível, que neste caso revela-se fundamental a recuperação de alguém. Pequenos gestos, grandes homens, Christian Gurtner por Mahatma Gandhi. De sorte que João conseguiu reconquistar sua vida, recomeçar, caso raro entre tantos que assistimos de casa, o ideal, e como idealista que sou, é deixar de assistir e participar, como futuro operador ou profissional do direito das mudanças que efetivamente façam a diferença, buscando alternativas para recuperações de outros Strellas, mesmo com pequenos gestos. O que seria de um estudante sem ideologias? E a minha é de conhecer minha humanidade exercitando a capacidade de amar o próximo.
Por Flávio Fraga

Canção


Canção

Cecília Meireles

Pus o meu sonho num navio

e o navio em cima do mar;

- depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre dos meus dedos

cobre as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O banho de xampu


O banho de xampu

Elizabeth Bishop

Tradução de Paulo Henriques Britto


Os liquens - silenciosas explosões

nas pedras - crescem e engordam,

concêntricas, cinzentas concussões.

Têm um encontro marcado

com os halos ao redor da lua, embora

até o momento nada tenha mudado.

E como o céu há de nos dar guardia

enquanto isso não se der,você há de convir, amiga,

que se precipitou;

e eis no que dá. Porque o Tempo é,

mais que tudo, contemporizador.

No teu cabelo negro brilham estrelas

cadentes, arredias.

Para onde irão elastão cedo, resolutas?

- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia

amassada e brilhante como a lua.

Meu Deus, me dê a coragem


Meu Deus, me dê a coragem
Clarice Lispector


Meu Deus, me dê a coragem

de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,

todos vazios de Tua presença.

Me dê a coragem de considerar esse vazio

como uma plenitude.

Faça com que eu seja a Tua amante humilde,

entrelaçada a Ti em êxtase.

Faça com que eu possa falar

com este vazio tremendo

e receber como resposta

o amor materno que nutre e embala.

Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,

sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.

Faça com que a solidão não me destrua.

Faça com que minha solidão me sirva de companhia.

Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.

Faça com que eu saiba ficar com o nada

e mesmo assim me sentir

como se estivesse plena de tudo.

Receba em teus braços

o meu pecado de pensar.

Tortura


Tortura
Florbela Espanca


Tirar dentro do peito a Emoção,

A lúcida Verdade, o Sentimento!?

E ser, depois de vir do coração,

Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso de alto pensamento,

E puro como um ritmo de oração!?

E ser, depois de vir do coração,

O pó, o nada, o sonho dum momento...

São assim ocos, rudes,

os meus versos:Rimas perdidas, vendavais dispersos,

Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,

O verso altivo e forte, estranho e duro,

Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

O êxito parece a mais doce das coisas


O Êxito Parece a Mais Doce das Coisas


O êxito parece a mais doce das coisas

A quem nunca venceu na vida.

Ter a compreensão de um néctar

Exige a mais dolorosa necessidade.

De entre o purpúreo Exército

Que hoje empunhou a Bandeira

Nenhum outro poderá dar

uma tão clara Definição da Vitória

Como o vencido - agonizante - Em cujo ouvido interdito

A distante ária triunfal

Ressoa nítida e pungente!


Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas" Tradução de Nuno Júdice